Rollo May, psicanalista que viveu no século XX, aborda em seu livro A coragem de criar, entre outros tópicos, o enigma da criatividade. Como essa força é capaz de moldar nossa realidade e pavimentar um caminho possível para um futuro. Além disso, trata da coragem, que pode ser entendida em seu texto como “a capacidade de seguir em frente, apesar do desespero”(MAY, 1982, p.10). E é provavelmente uma coragem similar, a de responsabilizar-se, que falta a muitos agentes em nosso mundo cadenciado pelos avanços tecnológicos.
Criatividade, inovação, disrupção e demais termos associados a ações humanas criadoras de novas possibilidades são frequentemente associadas as empresas de tecnologia. Tais organizações capitaneiam muitas das mudanças que ocorrem nas formas como lidamos com o nosso cotidiano. Sim, o processo de mudança ainda ocorre. Obviamente, muitos benefícios advieram das várias criações ofertadas por essas empresas. Muitas ocupam um lugar de destaque nos mais variados segmentos sociais, como se fossem um ídolo pop. Contudo, para além das culturas corporativas teatralmente usadas a fim de transparecer algo como “nós nos importamos”, uma palavra costuma não ocupar tanto os holofotes desses desbravadores do desconhecido: responsabilidade.
Responsabilidade, entendida aqui como o ato de responder por suas ações independente da qualidade dos resultados delas, costuma ser um assunto controverso no mundo da tecnologia. Por exemplo, as redes sociais costumam utilizar determinados marcos jurídicos para evitar qualquer responsabilização para com as ações dos seus usuários. No Brasil, citam bastante o art. 19 do marco civil da internet – a lei 12.965/2014. Esse artigo foi alvo recente de muitas criticas, principalmente após os atos golpistas do dia 08/01/2023 no Brasil. Mesmo diante de um dispositivo legal como o marco civil, ainda penso ser pertinente a indagação: é totalmente nula a responsabilidade do criador sobre aquilo que cria?
Acredito que o bom senso nos leve a dizer não. O dizer não também faz parte do agir responsável. Dizer por exemplo: “não use a tecnologia criada por nós dessa ou daquela forma”. O posicionar-se é requerido nesse contexto. Instrumentos como os termos de usos e licenças podem e ajudam nesse quesito. Mas são tacitamente induzidas a um papel secundário para a perspectiva do usuário final. Tal como marcar, bem no final, que aceita os termos e licença de determinado serviço online para concluir um cadastro. Me pergunto quantos serão os que acessam esses documentos antes de finalizar essa etapa. Ou melhor, me pergunto qual organização tem a coragem de colocar em destaque seus termos e licenças para os usuários. Claro que existem atores sérios que se preocupam com esses pontos. Porém, o quanto essa preocupação faz parte da ética dos demais jogadores desse grande jogo?
O jogo em questão pode ser considerado o de quem inova mais e mais rápido. Além de ser o mais lucrativo. E nesse jogo, o pensamento computacional, entendido aqui como a habilidade de “reformular um problema aparentemente difícil em um problema que sabemos como resolver, talvez por redução, incorporação, transformação ou simulação”(WING, 2006, p.1) fornece a coragem para enfrentar diversos problemas que não seriamos capazes de resolver sozinhos (WING, 2006). Mais uma indagação: essa coragem de resolver esses grandes problemas deve ser lastreada por uma imunidade a cerca dos meios/resultados empregados durante o processo de desenvolvimento e execução dessa solução?
Não mais. Já tem alguns anos que diversas organizações, principalmente ligadas a um governo estatal, reagem a carta branca dada implicitamente, entre o final do século XX e início do XXI, a empresas de tecnologia. Aqui no Brasil, além do marco civil, temos a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), lei n° 13.709/2018.
São instrumentos importantes, que ajudam a delimitar o escopo das ações de quem se propõem a atuar com dados, principalmente de terceiros. E também a responsabilizar quem infringe alguma das normas. A de se notar que, infelizmente, esses instrumentos podem não ser adotados de forma preventiva. E a simples punição por atos infracionais não garante por si uma mudança de postura daquele que as comete.
De novo, uma indagação: diante de fatos notórios e recentes, é possível desenvolver uma estratégia de desenvolvimento que, além de envolver a coragem de criar, envolva a coragem de pensar sobre o que se faz? De quais são as consequências possíveis daquilo que crio?
Acredito que sim. Na engenharia de software é indicado iniciar projetos como foco em segurança e privacidade, além da resolução do problema. Nessa etapa, independente do tipo de software, creio ser possível incluir o foco na responsabilidade. Evidenciar o alcance das ações do grupo de pessoas que é responsável pelos resultados do software em questão. Para além da coragem de solucionar desafios, das mais diversas naturezas, expor a coragem de responsabilizar-se por seus atos, sejam eles benéficos ou não.
Receber apenas congratulações e responsabilizar o usuário final por ações inapropriadas não parece mais ser um caminho viável para organizações da esfera tecnológica. Com tantas ferramentas a disposição, não é uma missão impossível adotar a coragem do título desse pequeno escrito como prática no desenvolvimento de novas tecnologias. Ou será que a adoção dessa prática depende, digamos, de uma inclinação moral? Enfim, meios existem. Torço para que não falte coragem para que boas decisões sejam tomadas.